sábado, 24 de janeiro de 2015

As Agências de Notação de Risco - Um novo livro de Delfim Vidal Santos

Sobre o livro de DELFIM VIDAL SANTOS

«AS AGÊNCIAS DE NOTAÇÃO DE RISCO
E A CRISE FINANCEIRA PLANETÁRIA»

Uma primeira reflexão pessoal:
Tudo isto da economia, das finanças, da política e da sociedade em geral está profundamente interligado... No sistema económico e financeiro em que vivemos há toda uma panóplia de diferentes tipos de agentes.
Desde os agentes públicos – supostamente responsáveis pela regulação e governação do sistema e que são supostos agirem em defesa daquilo que se defina como sendo do interesse público – até aos agentes estritamente privados e que, naturalmente, actuam na procura incessante do seu próprio benefício.
Em qualquer dos casos e mesmo no interior dessas duas grandes categorias de agentes sociais há toda uma enorme diversidade de tipos de agentes sociais, muitas vezes com interesses distintos e mesmo divergentes. Só a título de exemplo, haverá os banqueiros, os industriais, os agricultores, os quadros dirigentes, os trabalhadores em geral e os operários em particular, haverá ainda os múltiplos profissionais, os camponeses...
Por outro lado, os efeitos a posteriori das decisões e actuações de todos esses tipos de agentes, não são discerníveis de modo uniforme, todos esses efeitos têm temporalidades específicas: uns revelam-se em poucos minutos... Em contraste, outros efeitos levam alguns anos a virem ao de cima.
Junte-se a tudo isto um paradigma interpretativo – ou uma mundivisão – que reduz todos os agentes sociais à figura de «homo economicus» e teremos o caldo perfeito para a não compreensão dos fenómenos da Crise.
Estamos pois perante um fenómeno claramente hiper complexo com multiplos circuitos de retroacção positiva e negativa que, por sua vez vão afectar o comportamento emergente do sistema plítico, social e económico.
Nesse contexto este livro – dedicado ao estudo detalhado das agência de notação de risco e seu papel no sistema económico como um todo – é claramente um livro oportuno e que vem preencher um lacuna na discusssão dos problemas da crise da dívida e de como viemos a chegar à situação em que nos encontramos.
Essa lacuna era justamente o estudo detalhado do comportamento de um determinado tipo de agentes ou actores sociais: as agências de notação de risco.

Uma segunda reflexão pessoal.
Quando fui convidado para fazer uma apresentação deste livro e no que diz respeito à qualidade científica do texto fiquei à partida descansado pois que o mesmo tinha a chancela, ou selo de garantia, de uma escola como a Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Nesse sentido aquilo que mais me impressionou na leitura que fiz, foi a enorme quantidade de informação coligida pelo autor, assim como a forma bem estruturada como o texto foi organizado. Nesse sentido ficamos todos em dívida de cidadania para com Delfim Vidal Santos.

De facto o estudo de como - ainda que com toda a legalidade - dois ou três agentes privados vieram ao longo de algumas décadas e à vista de toda a gente a assumir funções «quase-soberanas» de regulação económico-financeira, era algo que, pelo menos em Português, estava a fazer falta.
Entretanto, já há alguns anos atrás que instituições como o Conselho Mundial dos Fundos de Pensões criticaram o facto de os governos da União Europeia terem imposto de forma dogmática a adopção das recomendações ditas de «Basileia II» adoptadas em 2005 e transpostas para as normas legais da União Europeia através da Directiva sobre os Requisitos de Capital, com efeitos a partir de 2008.
Uma tal directiva obrigou os bancos europeus e o próprio Banco Central Europeu a utilizar de modo imperativo as avaliações de crédito padronizadas por duas ou três empresas privadas, utilizando assim a política pública e por conseguinte o dinheiro dos contribuintes para reforçar o poder de mercado de um restrito cartel privado.
A este respeito, chamo a atenção para o facto de o Banco Internacional de Compensações ser um exemplo paradigmático da interpenetração de funções soberanas com interesses privados dos quais, interesses privados, se espera no entanto que actuem no interesse público... Referindo-se ao papel das agências notação de risco, como assinala um pequeno artigo da incontornável «Wikipedia», «Ironicamente os governos europeus abdicaram de um componente crucial da sua autoridade regulatória em favor de um cartel privado, não Europeu e altamente desregulado»

De resto, e passando ao livro propriamente dito, o mesmo está estruturado em cinco partes distintas:
Uma primeira parte é dedicada à
Análise Cronológica e Material da Crise Financeira, sua Evolução e Causas Justificativas. Deficiências e Conflitos de Interesses.
Nesta primeira parte o autor chama a atenção para uma série de factos e indícios, anteriores ao despoletar visível da crise financeira e que apontam claramente para actuação delituosa ou fradulenta por parte de pelo menos alguns executivos das principais agência de notação de risco.
Alguns intervenientes e observadores do desenrolar da crise, como foi o caso do CEO da DAGONG – uma nova agência de notação de crise de iniciativa chinesa, foram mesmo ao ponto de afirmar que a crise financeira terá sido despoletada pela Agências de Notação...
Para alguns desses observadores, não estaremos perante uma crise económica, mas sim perante uma crise de notação financeira.
Nessa primeira parte o autor faz também uma análise crítica da evolução da zona monetária do Euro com referência à teoria das zonas monetárias óptimas, chamando a atenção para os paradoxos da construção da União Europeia.
Temos também uma breve discussão de como as Agências de Notação de Risco entraram em força no despoletar da crise financeira e, mais concretamente, na sua participação no mercado das hipotecas subprime.
O autor chama assim a atenção para a evolução paradoxal das Agências de Notação de Risco que se transmutaram de «analistas de mercado» emitindo notações de risco a quem pretendia investir, para uma realidade antagónica, em que eram contratadas pelos emitentes de dívida para credibilizar os seus títulos, independentemente das suas eventuais falhas» e conflitos de interesse.
No que respeita ao comportamento organizacional das Agências de Notação de Risco, ainda que de uma forma implícita – mas também explicitando com exemplos – o autor chama a atenção para o conservadorismo das avaliações em «tempos de vacas gordas» (palavras minhas) e para a reacção exagerada quando surgem «incidentes inesperados»...
Estaremos aqui perante um bom exemplo da não compreensão da dinâmica profunda da economia, por parte dos «especialistas» das Agências de Notação de Risco.
Entretanto e refiro de passagem uma frase do autor citando um dirigente politico norte-americano a propósito das inquirições à posteriori sobre a Crise: «Não se pode fazer triliões de dólares em hipotecas sem que ninguém reparasse no que se passava»... Vem isto a propósito do fenómeno mais escandaloso da chamada «securitização» – ou transformação de hipotecas em «titulos de dívida» genéricos... Pondo tudo num só pacote... Foi de facto o «grande empacotamento»! Ou, se preferirem, o «grande embrulho»... De facto muitos «investidores» de todo o mundo foram bem embrulhados e as Agências de Notação de Risco tiveram nesse esquema um papel determinante.
Faço aqui uma outra e breve observação pessoal.
Nos EUA – como em certa medida noutras jurisidições – não há propriamente uma estrutura institucional bem integrada de regulação financeira. Desde logo porque uma definição do que é uma actividade financeira não é simples e directa... O que temos é então um agregado de agências com diferentes áreas de jurisdição em termos da sua regulação específica...
Junte-se a isso a possibilidade de escolha de regulador (banca por atacado, banca de retalho, seguros, crédito imobiliário) por parte de cada operador nos diversos mercados (distintos por tipo e por geografia...) e temos o caldo perfeito para a não regulação como regra normal...
Entretanto chamo aqui também a atenção para o facto de as Agências de Notação de Risco olharem para as «árvores» – uma a uma – mas não tanto para a «floresta»...
Por outro lado vão quase sempre atrás dos acontecimentos, oscilando entre o optimismo e o pessimismo exagerados...
Teremos ainda o pensamento politicamente correcto no interior deste tipo de empresas – tal como em qualquer outra organização empresarial - e o comportamento dos agentes, condicionado pela conformidade institucional ou de grupo.

Temos sem seguida uma segunda parte em que o autor estuda detalhadamente o objecto da Notação de Risco e da Arquitectura Institucional que levou à privatização de uma faceta de uma função sistémica muito importante: a da regulação do funcionamento e da fiscalização da idoneidade dos agentes intervenientes nos mercados financeiros.
O autor faz aqui também uma chamada de atenção para o modo como as agências de notação de risco passaram de um foco de atenção (ou falta dela...) relativamente às notações – encomendadas, saliente-se - dos título ditos de «subprime», para uma atenção particular para as notações – não encomendadas, saliente-se também - das dívidas soberanas.

Numa terceira parte, Delfim Vidal Santos faz uma interessante identificação das deficiências da arquitectura que assim se foi desenvolvendo – no jargão das novas ciências da complexidade diriamos que foi «emergindo» - sem que tivesse havido um qualquer «plano central» que explicitamente apontasse nesse sentido, chamando o autor a atenção para os múltiplos conflitos de interesse, assim como as muitas oportunidades para o aparecimento de disfuncionalidades sistémicas.

Numa quarta parte, o autor elabora uma breve síntese das propostas de solução – que entretanto têm vindo a ser discutidas - para atenuar os riscos inerentes ao actual modelo de actuação e regulação, quer da notação de risco enquanto actividade sistémica, quer do comportamento das agências propriamente ditas. Levantando-se muito em particular o problema do financiamento das agências de notação de risco.
Põe-se aqui o problema de determinar quem paga o quê...
Se partimos do princípio de que a notação de risco é considerada uma função sistémica útil e necessária – então coloca-se a questão de tentar saber quem é que a deve pagar... Se os responsáveis pela emissão de título de dívida, se os responsáveis pela aplicação de capitais financeiros. Por outras palavras, se os vendedores ou se os compradores desses «titulos de dívida»...

Finalmente e numa quinta parte deste livro, Vidal Santos discute então a questão – para mim mais especificamente juridica - da susceptibilidade de Responsabilização Civil das Agências de Notação de Risco.
Ou seja, de como é, ou não viável, «processar as agências de notação de risco»... «Levá-las a tribunal» e «obrigá-las a pagar uma qualquer indemnização por danos causados»...
De um ponto de vista de um sociólogo, supostamente especialista em sociologia das organizações e estudos da complexidade, este será talvez o aspecto mais interessante e polémico do livro. E faço esta reflexão na medida em que estamos hoje num mundo em que há já uma governação mundial efectiva, exercida de facto através de múltiplos organismos e instituições – desde as agências das Nações Unidas até a «coisas» tão banais como a FIFA ou o Comité Olímpico Mundial pssando pela organização de «feiras universais» e das reuniões como o G-7, o G.20 ou o Forum Económico Mundial, sem que no entanto haja de facto um governo mundial soberano.

Uma última reflexão que tenho a fazer é relativamente ao título do livro que diz «a crise financeira planetária». E sublinho aqui o adjectivo «planetária»...
Isto porque um dos mais graves defeitos da análise eonómica e financeira convencional, ou «politicamente correcta», é o de enfocar a sua atenção e estudo no plano de cada Estado-nação. Sendo a economia mundial um sistema hiper-complexo fechado (na medida em que ainda não exportamos o que quer que seja de bens mercantis para inexistentes colónias extra-planetárias), faz sempre falta e é um sinal positivo de análise ciêntífica da sociedade em que vivemos, chamar a atenção para a perspectiva e dimensão planetária do funcionamento do sistema económico global.

Guilherme da Fonseca-Statter
22 de Janeiro de 2015 - Livraria Desassossego