Sobre o livro de DELFIM
VIDAL SANTOS
«AS
AGÊNCIAS DE NOTAÇÃO DE RISCO
E
A CRISE FINANCEIRA PLANETÁRIA»
Uma
primeira reflexão pessoal:
Tudo
isto da economia, das finanças, da política e da sociedade em geral
está profundamente interligado... No sistema económico e financeiro
em que vivemos há toda uma panóplia de diferentes tipos de agentes.
Desde
os agentes públicos – supostamente responsáveis pela regulação
e governação do sistema e que são supostos agirem em defesa
daquilo que se defina como sendo do interesse público – até aos
agentes estritamente privados e que, naturalmente, actuam na procura
incessante do seu próprio benefício.
Em
qualquer dos casos e mesmo no interior dessas duas grandes categorias
de agentes sociais há toda uma enorme diversidade de tipos de
agentes sociais, muitas vezes com interesses distintos e mesmo
divergentes. Só a título de exemplo, haverá os banqueiros, os
industriais, os agricultores, os quadros dirigentes, os trabalhadores
em geral e os operários em particular, haverá ainda os múltiplos
profissionais, os camponeses...
Por
outro lado, os efeitos a posteriori das decisões e actuações
de todos esses tipos de agentes, não são discerníveis de modo
uniforme, todos esses efeitos têm temporalidades específicas: uns
revelam-se em poucos minutos... Em contraste, outros efeitos levam
alguns anos a virem ao de cima.
Junte-se
a tudo isto um paradigma interpretativo – ou uma mundivisão –
que reduz todos os agentes sociais à figura de «homo economicus»
e teremos o caldo perfeito para a não compreensão dos fenómenos da
Crise.
Estamos
pois perante um fenómeno claramente hiper complexo com multiplos
circuitos de retroacção positiva e negativa que, por sua vez vão
afectar o comportamento emergente do sistema plítico, social e
económico.
Nesse
contexto este livro – dedicado ao estudo detalhado das agência de
notação de risco e seu papel no sistema económico como um todo –
é claramente um livro oportuno e que vem preencher um lacuna na
discusssão dos problemas da crise da dívida e de como viemos a
chegar à situação em que nos encontramos.
Essa
lacuna era justamente o estudo detalhado do comportamento de um
determinado tipo de agentes ou actores sociais: as agências
de notação de risco.
Uma
segunda reflexão pessoal.
Quando
fui convidado para fazer uma apresentação deste livro e no que diz
respeito à qualidade científica do texto fiquei à partida
descansado pois que o mesmo tinha a chancela, ou selo de garantia, de
uma escola como a Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.
Nesse sentido aquilo que mais me impressionou na leitura que fiz, foi
a enorme quantidade de informação coligida pelo autor, assim como a
forma bem estruturada como o texto foi organizado. Nesse sentido
ficamos todos em dívida de cidadania para com Delfim Vidal Santos.
De
facto o estudo de como - ainda que com toda a legalidade - dois ou
três agentes privados vieram ao longo de algumas décadas e à vista
de toda a gente a assumir funções «quase-soberanas» de regulação
económico-financeira, era algo que, pelo menos em Português,
estava a fazer falta.
Entretanto,
já há alguns anos atrás que instituições como o Conselho Mundial
dos Fundos de Pensões criticaram o facto de os governos da União
Europeia terem imposto de forma dogmática a adopção das
recomendações ditas de «Basileia II» adoptadas em 2005 e
transpostas para as normas legais da União Europeia através da
Directiva sobre os Requisitos de Capital, com efeitos a partir de
2008.
Uma
tal directiva obrigou os bancos europeus e o próprio Banco Central
Europeu a utilizar de modo imperativo as avaliações de crédito
padronizadas por duas ou três empresas privadas, utilizando assim a
política pública e por conseguinte o dinheiro dos contribuintes
para reforçar o poder de mercado de um restrito cartel privado.
A
este respeito, chamo a atenção para o facto de o Banco
Internacional de Compensações ser um exemplo paradigmático da
interpenetração de funções soberanas com interesses privados dos
quais, interesses privados, se espera no entanto que actuem no
interesse público... Referindo-se ao papel das
agências notação de risco, como assinala um pequeno artigo da
incontornável «Wikipedia», «Ironicamente os governos europeus
abdicaram de um componente crucial da sua autoridade regulatória em
favor de um cartel privado, não Europeu e altamente desregulado»
De
resto, e passando ao livro propriamente dito, o mesmo está
estruturado em cinco partes distintas:
Uma
primeira parte é dedicada à
Análise
Cronológica e Material da Crise Financeira, sua Evolução e Causas
Justificativas. Deficiências e Conflitos de Interesses.
Nesta
primeira parte o autor chama a atenção para uma série de factos e
indícios, anteriores ao despoletar visível da crise financeira e
que apontam claramente para actuação delituosa ou fradulenta por
parte de pelo menos alguns executivos das principais agência de
notação de risco.
Alguns
intervenientes e observadores do desenrolar da crise, como foi o caso
do CEO da DAGONG – uma nova agência de notação de crise de
iniciativa chinesa, foram mesmo ao ponto de afirmar que a crise
financeira terá sido despoletada pela Agências de Notação...
Para
alguns desses observadores, não estaremos perante uma crise
económica, mas sim perante uma crise de notação financeira.
Nessa
primeira parte o autor faz também uma análise crítica da evolução
da zona monetária do Euro com referência à teoria das zonas
monetárias óptimas, chamando a atenção para os paradoxos da
construção da União Europeia.
Temos
também uma breve discussão de como as Agências de Notação de
Risco entraram em força no despoletar da crise financeira e, mais
concretamente, na sua participação no mercado das hipotecas
subprime.
O
autor chama assim a atenção para a evolução paradoxal das
Agências de Notação de Risco que se transmutaram de «analistas de
mercado» emitindo notações de risco a quem pretendia investir,
para uma realidade antagónica, em que eram contratadas pelos
emitentes de dívida para credibilizar os seus títulos,
independentemente das suas eventuais falhas» e conflitos de
interesse.
No
que respeita ao comportamento organizacional das Agências de Notação
de Risco, ainda que de uma forma implícita – mas também
explicitando com exemplos – o autor chama a atenção para o
conservadorismo das avaliações em «tempos de vacas gordas»
(palavras minhas) e para a reacção exagerada quando surgem
«incidentes inesperados»...
Estaremos
aqui perante um bom exemplo da não compreensão da dinâmica
profunda da economia, por parte dos «especialistas» das Agências
de Notação de Risco.
Entretanto
e refiro de passagem uma frase do autor citando um dirigente politico
norte-americano a propósito das inquirições à posteriori sobre a
Crise: «Não se pode fazer triliões de dólares em
hipotecas sem que ninguém reparasse no que se passava»... Vem
isto a propósito do fenómeno mais escandaloso da chamada
«securitização» – ou transformação de hipotecas em «titulos
de dívida» genéricos... Pondo tudo num só pacote... Foi de facto
o «grande empacotamento»! Ou, se preferirem, o «grande
embrulho»... De facto muitos «investidores» de todo o mundo foram
bem embrulhados e as Agências de Notação de Risco tiveram nesse
esquema um papel determinante.
Faço
aqui uma outra e breve observação pessoal.
Nos
EUA – como em certa medida noutras jurisidições – não há
propriamente uma estrutura institucional bem integrada de regulação
financeira. Desde logo porque uma definição do que é uma
actividade financeira não é simples e directa... O que temos é
então um agregado de agências com diferentes áreas de jurisdição
em termos da sua regulação específica...
Junte-se
a isso a possibilidade de escolha de regulador (banca por atacado,
banca de retalho, seguros, crédito imobiliário) por parte de cada
operador nos diversos mercados (distintos por tipo e por
geografia...) e temos o caldo perfeito para a não regulação como
regra normal...
Entretanto
chamo aqui também a atenção para o facto de as Agências de
Notação de Risco olharem para as «árvores» – uma a uma – mas
não tanto para a «floresta»...
Por
outro lado vão quase sempre atrás dos acontecimentos, oscilando
entre o optimismo e o pessimismo exagerados...
Teremos
ainda o pensamento politicamente correcto no interior deste tipo de
empresas – tal como em qualquer outra organização empresarial - e
o comportamento dos agentes, condicionado pela conformidade
institucional ou de grupo.
Temos
sem seguida uma segunda parte em que o autor estuda detalhadamente o
objecto da Notação de Risco e da Arquitectura Institucional que
levou à privatização de uma faceta de uma função sistémica
muito importante: a da regulação do funcionamento e da fiscalização
da idoneidade dos agentes intervenientes nos mercados financeiros.
O
autor faz aqui também uma chamada de atenção para o modo como as
agências de notação de risco passaram de um foco de atenção (ou
falta dela...) relativamente às notações – encomendadas,
saliente-se - dos título ditos de «subprime», para uma
atenção particular para as notações – não encomendadas,
saliente-se também - das dívidas soberanas.
Numa
terceira parte, Delfim Vidal Santos faz uma interessante
identificação das deficiências da arquitectura que assim se foi
desenvolvendo – no jargão das novas ciências da complexidade
diriamos que foi «emergindo» - sem que tivesse havido um
qualquer «plano central» que explicitamente apontasse nesse
sentido, chamando o autor a atenção para os múltiplos conflitos
de interesse, assim como as muitas oportunidades para o aparecimento
de disfuncionalidades sistémicas.
Numa
quarta parte, o autor elabora uma breve síntese das propostas de
solução – que entretanto têm vindo a ser discutidas - para
atenuar os riscos inerentes ao actual modelo de actuação e
regulação, quer da notação de risco enquanto actividade
sistémica, quer do comportamento das agências propriamente ditas.
Levantando-se muito em particular o problema do financiamento das
agências de notação de risco.
Põe-se
aqui o problema de determinar quem paga o quê...
Se
partimos do princípio de que a notação de risco é considerada uma
função sistémica útil e necessária – então coloca-se a
questão de tentar saber quem é que a deve pagar... Se os
responsáveis pela emissão de título de dívida, se os responsáveis
pela aplicação de capitais financeiros. Por outras palavras, se os
vendedores ou se os compradores desses «titulos de dívida»...
Finalmente
e numa quinta parte deste livro, Vidal Santos discute então a
questão – para mim mais especificamente juridica - da
susceptibilidade de Responsabilização Civil das Agências de
Notação de Risco.
Ou
seja, de como é, ou não viável, «processar as agências de
notação de risco»... «Levá-las a tribunal» e «obrigá-las a
pagar uma qualquer indemnização por danos causados»...
De
um ponto de vista de um sociólogo, supostamente especialista em
sociologia das organizações e estudos da complexidade, este será
talvez o aspecto mais interessante e polémico do livro. E faço esta
reflexão na medida em que estamos hoje num mundo em que há já uma
governação mundial efectiva, exercida de facto através de
múltiplos organismos e instituições – desde as agências das
Nações Unidas até a «coisas» tão banais como a FIFA ou o Comité
Olímpico Mundial pssando pela organização de «feiras universais»
e das reuniões como o G-7, o G.20 ou o Forum Económico Mundial, sem
que no entanto haja de facto um governo mundial soberano.
Uma
última reflexão que tenho a fazer é relativamente ao título do
livro que diz «a crise financeira planetária». E sublinho aqui o
adjectivo «planetária»...
Isto
porque um dos mais graves defeitos da análise eonómica e financeira
convencional, ou «politicamente correcta», é o de enfocar a sua
atenção e estudo no plano de cada Estado-nação. Sendo
a economia mundial um sistema hiper-complexo fechado (na medida em
que ainda não exportamos o que quer que seja de bens mercantis para
inexistentes colónias extra-planetárias), faz sempre falta e é um
sinal positivo de análise ciêntífica da sociedade em que vivemos,
chamar a atenção para a perspectiva
e dimensão planetária do funcionamento do sistema económico
global.
Guilherme
da Fonseca-Statter
22
de Janeiro de 2015 - Livraria Desassossego