quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

A Propósito do sistema mundial «offshore»



Em jeito de Prólogo

(para um eventual livrinho sobre o tema...)


Maurits Escher é talvez o artista que melhor nos oferece muitas representações gráficas do modo de pensar dialéticamente. Aquilo de que se trata aqui é também uma tentativa de perspectivar um determinado fenómeno, em permanente evolução e com múltiplas facetas, caracterísitico da sociedade humana em determinada fase da sua evolução histórica, e olhando esse fenómeno a partir de um determinado «ponto de observação»: o de alguém que procura entender o mundo e os porquês da emergência de determinadas caraterísticas e funções nos mecanismos e forças em presença. Nessa tentativa de perspectivar o sistema mundial de refúgios fiscais, adopta-se assim o ponto de vista de quem sofre os efeitos desse sistema mundial de refúgios fiscais, mas que procura adotar a posição teórica do analista distanciado. Assim sendo, ao olharmos para esse sistema mundial de refúgios fiscais estamos também a tentar vê-lo como uma faceta particular de um fenómeno mais abrangente, o qual seja, o comportamento recente do sistema capitalista.
Justifica-se este esclarecimento preliminar na medida em que se podem encontrar múltiplas explicações e narrativas sobre o fenómeno, velho já de alguns séculos, mas que sobfreu recentemente (de há umas três décadas a esta parte) um crescimento verdadeiramente exponencial.
Algumas dessas narrativas e explicações justificam e defendem e existência de refúgios fiscais, mesmo levando em linha de conta alguns efeitos preversos. Outras narrativas e explicações concentram a sua atenção em determinadas caraterísticas recentes deste fenómeno de «fuga aos impostos», sem com isso entrarem nas causas mais profundas da (relativamente) súbita «explosão» do fenómeno «refúgios fiscais».
É nesse contexto que é importantíssimo olhar estas coisas de um ponto de vista em que se adopte o modo de pensar dialéticamente: quer em termos de transição continuada entre determinadas condições de existência sem que determinado fenómeno perca a sua identidade específica (o adolescente já não é a criança mas ainda não é o adulto...), quer em termos da diversidade de pontos de vista possíveis sobre um mesmo fenómeno. Quero com isto dizer que das múltiplas e diversificadas narrativas e explicações que se podem encontrar na literatura sobre os refúgios fiscais, sempre é possível aproveitar alguma coisa de útil para uma compreensão global e mais abrangente do fenómeno.
Tem-se desenrolado ao longo dos séculos um conflito latente entre dois tipos de agentes ou atores sociais que poderiamos aqui designar por «empresas» e «Estados». Outros poderão falar antes no recorrente conflito entre a «força da espada» e a «força do dinheiro». Claro que, para além do permanente e latente conflito, sempre houve entre estes dois tipos de agentes sociais, interpenetrações de pessoas concretas e de modos institucionais de actuar, conluios, alianças e compromissos vários1. Ao longo dos séculos tivemos as repúblicas italianas, constituídas a partir de coligações do poder económico, tivemos a Liga Hanseática ou ainda a primeira empresa privada multinacional, a Companhia Holandesa das Índias Orientais, a qual assumiu paulatinamente poderes soberanos sobre os territórios que decidiu administrar.
Com a emergência e consolidação do moderno Estado, com as características de soberania e respetiva exclusividade de determinados direitos e obrigações, que hoje se lhe atribuem, aquele conflito permanente entre a esfera privada do negócio mercantil e a esfera pública dos interesses da colectividade como um todo, assumiu novos contornos que se vêem a traduzir e resumir na sempre controversa problemática da cobrança e utilização de impostos...
Para conclusão deste prólogo devo chamar a atenção para o uso preferencial de «refúgio fiscal» em vez de «paraíso fiscal». Não é uma questão de pedantismo. Já foi sugerido que a expressão «paraíso fiscal» teria resultado de uma errada tradução da palavra inglesa «haven» (em vez de «heaven»). Enquanto que «haven» quer literalmente dizer «refúgio» (ou porto de abrigo), «heaven» quer de facto fizer «paraíso» (ou «céu»). Pois bem, enquanto que a expressão «paraíso fiscal» pode também transmitir a ideia de «algo de muito bom» e, de certa forma, inofensivo e «aberto a toda a gente» (em particular aos que lá vivem...), a expressão «refúgio fiscal» pode eventualmente alertar a cidadania mais responsável para o caracter ilícito da evasão e evitação fiscal. Aquilo não são paraísos, são refúgios (onde se escondem os dinheiros daqueles que não querem pagar impotsos e que nós, todos os outros, temos que compensar e substituir com o pagamento dos nossos impostos e a taxas cada vez mais elevadas...)

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

A Justiça e o Sistema Multibanco

Confesso que conheço mal os meandros da Justiça portuguesa. Já tive ocasião de entrar em vários tribunais, já fui testemunha e observador interessado em «meia-duzia» de processos e tive ocasião de observar, com alguma atenção, os procedimentos, mais ou menos arcaicos, que vão sendo adoptados. São do conhecimento geral expressões como «a Justiça não funciona», «estão sempre a prescrever processos importantes», «a Justiça é só para os que podem pagar»... etc. etc.
Embora tenha um percurso profissional numa área profundamente tecnológica, não penso ser um tecnocrata, no sentido de achar que «isto» não vai lá só (nem sobretudo) com soluções técnicas.
Vem isto a propósito de ontem ter tido ocasião de ouvir o dr. Marinho Pinto dizer na televisão que os procuradores do Ministério Público não têm acesso directo a bases de dados de entidades – se bem me lembro, posso estar enganado nos detalhes - como as Conservatórias Prediais ou das Repartições de Finanças.
E perguntei-me como tal era ainda possível, num país que se gaba, com toda a razão, de ter o sistema de transacções interbancárias (e não só...) mais avançado do mundo: o sistema multibanco.
Se temos em Portugal inteligência e conhecimento tecnológico para desenvolver, e manter a funcionar, um sistema como o sistema multibanco, como é que não somos capazes de montar e manter a funcionar um sistema informático que permita a qualquer agente do Ministério Público (ou a qualquer agente das autoridades públicas, devidamente autorizados) a aceder instantaneamente a toda e qualquer informação necessária e relevante para a investigação criminal, designadamente os crimes de colarinho branco.
E depois lembrei-me (esquecido que eu sou...) de que o sistema multibanco só foi possível por causa do «gonçalvismo»... Logo, uma solução eminentemente política.
De facto, os outros países também têm engenheiros informáticos e programadores de computadores de altíssima qualidade. Todos os bancos desses outros países têm também ATM's (caixas automáticos) em todas as esquinas... O que não têm é um sistema multibanco...
Repito: se somos capazes de ter um sistema com a sofisticação e capacidades do sistema multibanco porque raio de razão é que não somos capazes de ter um sistema informatizado que ligue todos os tribunais, de todo o país, com acesso (devidamente regularizado) por parte de todos os agentes da Justiça?!... A quem é que isso não interessa?...
Pelos vistos vai ser preciso um novo período de «gonçalvismo»...

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Para onde é que vai o dinheiro das «poupanças» deles?...

Aquilo que também se justifica fazer ou «Perguntar não ofende».
Quando se fala em economia do desenvolvimento e de crescimento económico, há uns senhores da teoria económica convencional que nos dizem ser razoável (e até bom) para o sistema que os ricos ganhem desproporcionalmente mais do que os pobres, na medida em que os ricos têm (dizem eles) uma maior propensão marginal para a poupança, enquanto que os pobres têm uma maior (ou mesmo muito maior) propensão marginal para o consumo; do estilo «pataca ganha, pataca gasta». Enquanto que os ricos tendo uma maior propensão (marginal) para a poupança (não gastam, em consumo, tudo aquilo que ganham) estariam naturalmente melhor colocados para fazer investimento. Coisa que é fundamental para o crescimento económico.
Tudo isto parece muito razoável, quase que do senso comum e, em determinadas circunstâncias históricas, até parece ter sido assim que a coisa funcionou.

O problema aqui, é a falta de perspetiva histórica e de pensar dialéticamente: as coisas em movimento, o permanente devir e transformação da sociedade... O que funcionou ontem pode não funcionar hoje...

Neste contexto e nas actuais circunstâncias históricas justificar-se-ia exigir aos senhores mais ricos deste mundo, em particular no caso de um país como Portugal ou a Grécia, que nos facilitassem uma lista das aplicações das suas poupanças. Esta exigência é válida ou relevante para qualquer país mas, para já, contentemo-nos em começar por alguns países mais representativos do tipo de crise em que nos encontramos. Os senhores mais ricos, que têm acumulado lucros e prémios (mais ou menos chorudos) pela sua gestão empresarial que nos informem sobre quais os investimentos que têm feito em coisa concretas, em empreendimentos reprodutivos e sustentáveis, com criação de postos de trabalho e valor acrescentado.
Dizem-nos (os tais defensores da teoria económica convencional) que eles – os que ganham mais dinheiro - até são empresários de sucesso e especialmente dotados de um decantado «espírico empreendedor». É que, de acordo com a teoria convencional, até é para isso, para aumentar o investimento, que serve a tal maior propensão marginal para a popupança. Por outras palavras, para onde é que eles levam o dinheiro ?... Pergunta legítima, ou não?!...

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Ainda a propósito da Jerónimo Martins

No último programa «O Eixo do Mal» a Jerónimo Martins voltou a ser o «bombo da festa».
Com excepção de Daniel Oliveira aquilo foi uma espécie de desafio da asneira, em alguns casos pura demagogia ou simples ignorância/desconhecimento sobre as coisas da globalização. É verdade que ninguém é obrigado a estudar a fundo estes fenómenos, mas o estudo destas matérias não sendo «campo reservado» de especialistas (a matéria interessa a toda a gente...) deveria ser, pelo menos, uma preocupação de quem tem «tempo de antena» e vai para a TV botar palpites e ajudar a «fazer a opinião».
Repito, tirando os comentários de Daniel Oliveira e a sua pertinente e repetida pergunta «se não há interesse financeiro/fiscal em a JM ir para a Holanda, então porque é que vai?», quase todo o discurso dos participantes foi para comentar/condenar ou explicar a decisão tomada com base na moralidade (ou falta dela) dos dirigentes da JM. Como se a Ética tivesse alguma coisa a ver com isto ou se os dirigentes empresariais fossem atrás de injunções morais... Como se não houvesse uma lógica objectiva e implacável do sistema.
Depois e para ajudar à festa veio a notícia de que a Jerónimo Martins andava a distribuir uns panfletos a explicar aos clientes da cadeia «Pingo Doce» as «inverdades» (porque será que não dizem «mentiras»?...)
Vamos a ver: a Holanda (o estado holandês e os bancos ali existentes) não trabalha de borla («não há almoços grátis» dizem eles, com alguma razão).
Se não estou em erro, foi em 2008 que transitaram pela Holanda – a caminho de outros refúgios fiscais – qualquer coisa como 18.000.000.000.000 de dólares. Imagine-se que os bancos holandeses só cobravam 0,5% (meio por cento) de comisssão pelo serviço prestado. Teriam sido 90.000.000.000 de dólares que por ali ficaram. Dados os reduzidos «custos de transacção» relativos àquele trânsito, imagine-se que metade daqueles biliões (sei lá...) foram direitinhos para as contas de lucros dos tais bancos. Depois imagine-se também que os bancos holandeses pagaram ao Estado Holandês apenas 10% de imposto sobre aqueles «lucros». O estado holandês teria assim empochado (se calhar não... isto sou eu só a especular...) qualquer coisa como 4.500.000 de dólares. Não seria assim de admirar que eles, os holandeses, não tenham grandes problemas de «dívida»... E que o Estado Social deles esteja muito melhor do que o nosso...
Veio também à baila a estória da não existência de um acordo de dupla tributação entre Portugal e a Colômbia. Como a Holanda tem acordos desses com quase todos os países (como seria de esperar de qualquer refúgio fiscal que se preze...), essa seria uma das razões pela qual a família Soares dos Santos teria tomado aquela decisão. A razão de ser de «acordos de dupla tributação» é justamente a evitação de pagamento de impostos, duas vezes, supostamente sobre os mesmos rendimentos (haverá logo aqui uma confusão conceptual entre rendimentos pessoais e lucros empresariais, mas adiante...). Seja como for, e sem fazer aqui qualquer processo de intenção a quem quer que seja, convém lembrar que uma das razões para o aproveitamento daqueles acordos de «dupla tributação» é a «dupla não-tributação». O leitor visitante que passe por aqui experimente ir ao Google (ou outro mecanismo de busca...) e introduza como frase de busca «Double Non Taxation» e encontra logo milhares de ocorrências. Salienta-se em particular o texto «European Commission to launch a public consultation on double non- taxation - December 2011».
Como assinala o Prof. Sol Picciotto da Universidade de Lancaster, há muitas décadas que as grandes empresas e as grandes fortunas pessoais descobriram como transformar a evitação do pagamento de impostos em duplicado – não pagar a dois Estados – em não pagar impostos nenhuns...

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

O barulho mediático sobre a Jerónimo Martins

Hoje - dia 4 de Janeiro - a rádio TSF dedicou o seu programa diário «Forum TSF» a debater a questão da transferência da sede fiscal da SGPS (ou lá do que seja...) da «Jerónimo Martins», de Portugal para a Holanda. De repente começou a falar-se (e ainda bem...) desta estória, antiga de muitos anos, da fuga aos impostos (evasão e/ou evitação fiscal) por parte das maiores empresas, em todo o mundo e também em Portugal. Das 20 empresas do PSI20 já são 19 aquelas que estão sediadas na Holanda ou no Luxemburgo, notórios refúgios fiscais que continuam impunemente a parasitar as outras economias da União Europeia (mas não só, claro!!!...).
Confesso que fiquei particularmente sensibilizado (chocado, revoltado, indignado...) com a supina lata de um senhor administrador de uma grande empresa cervejeira da cidade do Porto, a justificar (e a defender) o direito das empresas em refugiarem as suas sedes fiscais, em países onde o regime fiscal é «mais amigo dos 'investidores'»...
E depois, para que os ouvintes ficassem esclarecidos sobre uma eventual «neutralidade» do entrevistado relativamente a esta questão, foi acrescentado pelo moderador da TSF, que a referida empresa cervejeira não fazia «isso» (de ter uma sede fiscal num daqueles refúgios fiscais). Esqueceram-se, o entrevistador e o entrevistado, de esclarecer que 44% do capital da dita cuja empresa cervejeira é propriedade de uma empresa transnacional (a qual já tem a sua própria rede de refúgios fiscais) e que os restantes 56% do capital são propriedade de 3 «holdings» supostamente portuguesas.
E disse mais o tal senhor administrador: que o Luxemburgo e a Holanda, ao contrário de alguns refúgios fiscais (dizia ele...) são países respeitáveis e que portanto o que se estava a fazer era perfeitamente legal. Pois, houve um tempo em que a escravatura também era legal. E o regime de «apartheid» na África do Sul (só acabou há menos de 20 anos) também era legal... Como se o roubo legalizado deixasse de ser roubo.
Por fim (ou melhor, depois disso eu desliguei...) o senhor administrador deu ainda o exemplo da pouca competitividade fiscal do regime português, dizendo que em Portugal (ao contrário da Holanda e do Luxemburgo) os «investidores» que comprassem uma empresa (em processo de concentração e reestruturação empresarial, «dixit») por um valor de mercado acima do valor contabilístico dessa empresa, não podiam depois descontar essa diferença como prejuízo fiscal.
A confusão conceptual (e demagógica) é tanta que daqui sublinho apenas esta coisa: para estes senhores, investir (e criar riqueza, «dixit») é comprar empresas (e depois despedir uns 10% a 20% do pessoal para a tornar «mais rentável», dizem eles...).
Antigamente investir era criar novos empreendimentos, de raíz...
Até já ouvi a um outro senhor de uma outra grande empresa do PSI20, reconhecer essa coisa elementar: «quando se compra uma empresa não se está a investir, o que está a acontecer é apenas a troca de propriedade» (de uma «fonte de lucro», acrescento eu...)
De passagem, o senhor administrador, não deixou de apelar à necessidade de um entendimento alargado entre todos os partidos do «arco-de-governabilidade» («dixit»). Pelos vistos os outros partidos - mais à esquerda - esses não têm direito a ter «voto na matéria». Quando muito (e vá lá, vá lá...) poderão ir protestando. Dentro das regras, claro! Presume-se.