A propósito de um apontamento anterior sobre o tema da crise de sobreprodução, um leitor deixou aqui alguns comentários muito pertinentes e que justificam uma discussão mais detalhada. Para não estar a reinventar o que já tive ocasião de escrever, transcrevo para aqui alguns parágrafos do livro «ANATOMIA DA CRISE - Crónica de um Desastre Anunciado» (Lisboa, 2009).
«Considerando
que esta crise (como tantas outras antes desta) é uma crise de
sobreprodução, então resultará daí uma primeira medida
estrutural (no âmbito da economia) e estruturante (no âmbito da
sociedade).
Desde
logo, em primeiro lugar, penso na redução sistemática e
progressiva dos horários de trabalho. Reclamação particularmente
relevante se considerada no âmbito da totalidade dos países da
União Europeia. Vem na linha da proposta aprovada em França pelo
governo de Lionel Jospin, entretanto combatida pelos governos de
direita que lhe sucederam. Vem também na linha da ênfase que hoje é
dada, por diversos quadrantes políticos, à necessidade de
“partilhar por todos o trabalho de facto disponível”.
Parece-me,
no mínimo, estranho que enquanto se vai aceitando como natural que
em algumas fábricas ou sectores de actividade se fechem portas ou se
suspendam actividades, durante determinados períodos (algumas
semanas, por exemplo), de modo a ajustar a produção à procura
efectiva, não se pense ao mesmo tempo em, pura e simplesmente,
consagrar e generalizar essa prática, reduzindo os horários de
trabalho para toda a gente.
Em
termos de lógica funcional do sistema é exactamente a mesma coisa.
Será tudo apenas uma questão de discutir e ajustar os detalhes. Se
menos 3 horas por semana para toda a gente, neste ou naquele sector,
se um dia inteiro por semana, se isto ou aquilo... Não há aqui
soluções “chave na mão”. Será sempre necessário analisar,
caso a caso, e ninguém melhor para o fazer do que as empresas e os
trabalhadores.
Ao
Estado cabe apenas determinar o princípio, básico e fundamental, de
uma redução geral do horário de trabalho, mas não apenas
como “uma saída para a crise”. A lógica do sistema há-de
impor, mais década menos década, que cada vez seja menos necessário
“trabalhar” tanto como até agora, no sentido em que hoje se
entende esta palavra e que cada vez seja mais necessário “passar a
intervir” na vida social.
Lembro
a esse respeito a longa e dura luta que houve que travar, nos idos de
1844, para que no Reino Unido se generalizasse a redução dos
horários de trabalho, de 12 para 10 horas por dia. Até fins do
século XIX, princípios do século XX, conseguiu-se generalizar a
prática das 48 horas por semana. Depois, em meados do século XX
passou-se para o padrão de 40 horas por semana.
De
então para cá, apesar dos enormes ganhos de produtividade social, a
situação estagnou. Ou seja, em sessenta anos passou-se de 72 horas
para 48 horas semanais. Mas, em cem anos, e apesar (repete-se), dos
enormes ganhos de produtividade social agregada, não se conseguiu
mais do que passar de 48 horas para 40 horas semanais1.
As
empresas sempre, mas sempre, se opuseram a quaisquer reduções de
horários de trabalho, invocando sempre as mais urgentes razões e
acenando para as dramáticas consequências sociais e económicas no
caso de o Estado impor reduções aos horários de trabalho.
Mesmo
reconhecendo o aumento generalizado das férias anuais, a consulta de
quaisquer estatísticas laborais, mostrará à evidência, que há
ainda um longo caminho a percorrer para ajustar os tempos de trabalho
às necessidades efectivas da vida social e económica.
Se
entretanto considerarmos os tempos de acesso aos locais de trabalho,
por parte das populações urbanas, vemos facilmente o impacto
negativo que esta situação continua a ter (e a agravar-se) sobre a
vida familiar e a vida social em geral. Neste contexto, a luta por
uma redução progressiva dos horários de trabalho deve ser
prosseguida até que seja alcançada a taxa “natural” de
desemprego (cerca de 2 a 3%) e que corresponde aos desempregados
ocasionais e em procura (de curta duração) de primeiro ou segundo
emprego.
Esta
redução progressiva dos horários de trabalho poderá mesmo ser
efectuada com uma redução proporcional do salário nominal.
Sublinha-se aqui o carácter de salário nominal!... Por um
lado, ao trabalhador o que interessa é o salário liquido que
efectivamente recebe, no seu bolso ou conta bancária, no fim da cada
mês. Ou seja, bastará que o Estado faça os necessários e
adequados ajustes nas tabelas e taxas de IRS, para que os
trabalhadores ganhando nominalmente menos, continuem a ganhar
efectivamente o mesmo, em termos absolutos, ainda que algo mais, em
termos relativos.
Por
outro lado, em sistema capitalista e em regime de “Estado Social”,
não é razoável esperar que sejam as empresas, uma a uma e a título
individual, a suportar os encargos da solidariedade social. Esse
encargo cabe por inteiro ao Estado de que todos somos cidadãos.
Em
todo o caso é importante sublinhar que com a adopção de medidas
deste tipo, todos podem sair a ganhar: os trabalhadores, as empresas
e o Estado. Os trabalhadores porque passam a dispor de mais tempo
para a família ou para seu aproveitamento pessoal. Desde o lazer à
intervenção cívica. As empresas porque passam a dispor de mais
variadas opções, em termos de qualificações, trabalhos por turnos
e ainda de pessoas com mais variadas e diferentes motivações e
qualificações. O Estado, porque tendo menos encargos com subsídios
de desemprego, poderá mais facilmente suportar a não receita em
sede de IRS, podendo mesmo, eventualmente – é apenas uma mera
questão de “engenharia fiscal e de contabilidade social” –
adoptar esquemas de incentivos fiscais dirigidos à actividade
empresarial. Finalmente, o Estado ganhará sobretudo em termos de
maior coesão social, a qual é sempre propícia ao investimento.
Referi
mais atrás que com uma redução gradual, mas sistemática e
sustentada, dos horários de trabalho, os trabalhadores passariam a
ter mais tempo para a intervenção cívica. Tal facto
parece-me crucial para a consciencialização da cidadania e para a
discussão colectiva das decisões políticas mais importantes. Muito
em particular no que diz respeito à participação activa nos
diversos meios de discussão e decisão, desde as autarquias até à
participação no processamento da Justiça.
Mas
aqui – na ocupação dos “tempos livres” que pudessem ser
dedicados a uma intervenção cívica - haverá a considerar o peso
cada vez maior das indústrias da alienação as quais têm tido um
papel explicitamente assumido de “entreter e distrair o pessoal”.
Como já diziam os dirigentes do Império Romano, “panem et
circenses”...»
1
Resumindo a evolução ao longo do século XIX, temos que até 1832
não havia limite e a questão de ‘horário de trabalho’ nem
sequer se punha. Em 1833 passou-se para o limite das 12 horas por
dia ou 72 horas por semana. Em 1844 passou-se para o limite de 10
horas por dia ou 60 horas por semana, mas
apenas em algumas actividades de maior desgaste físico. Em
1848 generalizou-se o limite das 10 horas por dia ou 60 horas por
semana.
2
A razão é simples e faz todo o sentido: é necessário (tem toda a
vantagem...) aproveitar ao máximo o capital fixo (as máquinas e as
estruturas físicas...) para delas tirar o máximo rendimento. Além
do mais o trabalho por turnos – por causa de eventuais paragens ou
abrandamentos – parece resultar menos eficiente do que o
trabalho continuado dos mesmos trabalhadores.
Chamo a atenção sobre a coincidência de dois factos: (1) a tomada de poder no pós-guerra pela social democracia e (2) o fim da diminuição da jornada de trabalho.
ResponderEliminarE chama muito bem... Enquanto durou a «festa» dos anos de crescimento parecia que ia tudo bem com a «gestão do capitalismo» por parte da social-democracia «bernsteiniana». Só que a festa chegou ao fim - com o augidar da contradição fundamental do sistema - e "eles" embarcaram alegremente no canto de sereia da «terceira via».
EliminarEsta problemática constitui um foco de análise muito importante, em meu entender. Separando áreas. Em primeiro lugar aproximações físicas, de necessidade (i) comparação de consumo e produção (ii) horas de trabalho para produzir que interligam com a tecnologia usada (iii) volumes consumidos. Neste campo a avaliação é mais facilmente mensurável e portanto quantificável. Os equilíbrios são físicos, perceptíveis por toda a gente.
ResponderEliminarEm segundo lugar aproximações financeiras. Mas estas são aproximações instrumentais. A moeda é um instrumento de troca.
Se começarmos pelas avaliações físicas, estamos num terreno mais seguro. Só depois deveremos ir subsidiáriamente para o campo da moeda/preços e por aí fora. Os equilíbrios aí que são mais subjectivos, enraízam nos interesses e já não nas necessidades.
Gostava de saber como se pensam estas coisas separando estas duas áreas.
Abraço
Silva Alves
Estimado Silva Alves,
EliminarObrigado pelas suas observações. Vou aproveitar a «dica» para mais uma «mensagem»...
Abraço