Dizem nos jornais que passaram agora 30 anos desde o arranque do sistema Multibanco, o qual é usualmente considerado único no mundo pela variedade das suas múltiplas funções. Não se trata apenas de um grande agregado de máquinas de distribuição de dinheiro contra a apresentação de cartões de crédito ou de cartões de débito. É, de facto, muito mais do que isso.
«Há 30 anos que o MULTIBANCO “Movimenta a Vida” dos portugueses com toda a comodidade, segurança e fiabilidade. Só no passado mês de Julho, a Rede MULTIBANCO atingiu um novo recorde mensal alcançando um total de 210 milhões de operações processadas. Mas já imaginou como seria sem o MULTIBANCO? Se não existisse a Rede MULTIBANCO, não seria possível fazer acções tão simples como pagar a água à meia noite ou emitir uma licença de caça ao sábado de manhã. Teríamos de esperar horas em filas para comprar um bilhete de comboio em vez de o fazer sentados no sofá em casa, por exemplo. Ou teríamos de andar com a carteira com moedas para pagar as portagens, em vez de o fazer com o cartão. O MULTIBANCO é, sem dúvida, uma Marca que já faz parte da vida dos portugueses, facilitando as atividades do dia-a-dia».
Do sítio da SIBS.
A esse respeito tenho dito em diversas ocasiões que essa característica (de ser muito mais do que um conjunto de máquinas de distribuição de dinheiro...) e por muito estranho que isso possa parecer a muitos espíritos bem pensantes, se deve ao chamado período do «gonçalvismo». Isso por causa da nacionalização da banca. Entretanto e a esse respeito convém lembrar a «tensão dialéctica» que se desenvolve de modo permanente entre a concorrência e a cooperação entre os diversos agentes económicos, sempre em busca de novas oportunidades de negócio. O mesmo acontece entre os bancos. Entregues a si mesmos procuram ao mesmo tempo, ainda que de modos distintos, cooperar no que diz respeito a conluios para manipular taxas de juros, por exemplo, mas também concorrer pelo dinheiro de todos e quaisquer potenciais depositantes e de pedidos de crédito.
Para caracterizar devidamente o sistema Multibanco são precisas algumas advertências preliminares. Em primeiro lugar, no universo das actividades bancárias ditas de retalho, é conveniente não confundir coisas e funções diferentes umas das outras. Por exemplo convém não confundir cartões de débito com cartões de crédito, duas formas distintas (ainda que complementares) de dinheiro plástico. Em segundo lugar convém não confundir, por um lado, muitos ATM's (ou caixas automáticos) com, por outro lado, um sistema integrado de máquinas e programas que propiciem múltiplas funções monetárias. Em terceiro lugar convém não confundir um sistema integrado de terminais em rede (para proporcionar as referidas funções monetárias), com os múltiplos serviços de cariz mais ou menos similar (mas nem sempre...) disponíveis na rede global «internet».
De facto a informatização de todas as actividades económicas e das actividades financeiras em particular tem permitido o desenvolvimento de sistemas de registo e controle de informação que, até há poucas décadas atrás, poucos de nós imaginávamos. No caso do sistema Multibanco, por exemplo, quando o mesmo foi proposto duvido que os mentores iniciais tivessem à partida uma ideia de que «aquilo» se pudesse vir a transformar no sistema que temos hoje (ViaVerde, Impostos, transferências entre contas, pagamento de facturas, licenças de pesca e etc…)
Entretanto, e por um daqueles acasos da pequena história do planeta, caiu em sorte a este escriba o estar lá (na empresa multinacional de informática) no lugar certo e no momento adequado para estar bem no centro de um processo então em fase de arranque embrionário. «Proposal Team Leader» seria a designação (que veio mais tarde, no jargão empresarial) que então caberia a este escriba na elaboração do estudo técnico-comercial que deu origem à elaboração da proposta técnico-comercial (também de sua co-responsabilidade) que veio a dar origem ao Multibanco. Muito prosaicamente, poderá dizer-se que este comentador foi quem (juntamente com mais dois colegas) fez a venda do sistema multibanco.
A quem procure informar-se, não parece fácil encontrar as raízes do sistema Multibanco, quando o próprio sítio «internético» da SIBS (proprietária e gestora do sistema) não fornece a esse respeito qualquer informação. Algo de estranho se considerarmos que a maioria dos sítios disponíveis de muitas outras instituições financeiras por esse mundo fora fazem questão de mostrar as suas origens. Se eu fosse dado a «teorias da conspiração» suspeitaria que alguém parece ter vergonha das suas origens «revolucionárias».
A respeito das raízes históricas do Multibanco e da SIBS o mais que consegui, na pesquisa rudimentar a que pude proceder, para complementar memórias pessoais, foram alguns elementos que passo a elencar.
Para além de uma breve referência à história da introdução de cartões de crédito em Portugal (tal como assinalei acima, convém não confundir...) por iniciativa de responsáveis do Banco Português do Atlântico e do Banco Totta & Açores, a partir de uma reunião em Roma em 1969 «destinada a sensibilizar os quadros da banca europeia para a provável expansão dos cartões de crédito e, sobretudo, para que não se incorresse na Europa nos mesmos erros que haviam sido cometidos nos Estados Unidos neste domínio»1, pouco mais se encontra que relate, com um mínimo de detalhe, as origens da SIBS e do sistema Multibanco.
Entretanto, e na opinião do Engº Sebastião de Lancastre, então Director-Geral da Unicre, à «Revista Unibanco» (Março e Junho de 19941) «o sucesso dos meios de pagamento via cartão de plástico em Portugal, ao ponto de estarmos há vários anos perfeitamente a par dos países mais avançados deste campo, se deve fundamentalmente ao facto de se terem tomado entre nós as decisões certas nos momentos certos. Isso é válido tanto para a decisão de criar a Unicre em 1971 como iniciativa conjunta de seis grandes bancos, por mérito, coragem e visão dos quadros superiores bancários a que me referi atrás, como também para a decisão da criação da SIBS em 1981. Neste último caso, é justo que cite aqueles a quem se deve a sabedoria de avançar para uma empresa integrando os vários bancos: Dr. Rui Vilar, Dr. Almerindo Marques, Dr. Palmeiro Ribeiro e Dr. Ribeiro Moreira».
Entretanto, a julgar pelo teor das muitas conversas em que participei na altura, assim como pelo teor do caderno de encargos que tive que estudar ao pormenor, a ideia original dos objectivos estratégicos do sistema que então se perspectivava, parece dever ser creditada principalmente ao acima referido dr. Palmeiro Ribeiro (que este escriba nunca teve o privilégio de conhecer, pois o mesmo já parecia estar afastado do processo).
Poderia este escriba falar sobre “N” discussões «mais ou menos técnicas», designadamente as discussões que vieram dar origem ao PIN de 4 (quatro) dígitos, em vez dos seis que estavam propostos. Para já não falar de um projecto de uma espécie de «contabilidade nacional» (fazia parte do caderno de encargos) e então rejeitado por este escriba por ser demasiado avançado («economia planificada centralmente» à la Janos Kornai 2).
Este escriba tomou conta do processo em 1982/83. Em 1984 já a venda estava concretizada e o processo de instalação e arranque do sistema em andamento. A questão do «gonçalvismo» (que passa despercebido da quase totalidade dos comentadores actuais por não pensarem bem no problema) é simples: se bem me lembro foi por determinação da Secretaria de Estado do Tesouro, a quem cabia a tutela dos bancos
comerciais (então ainda todos nacionalizados), que em 1982 todos os
bancos aderiram ao sistema SIBS então ainda em formação. Os bancos
estrangeiros (se bem me lembro, o BOLSA-Bank of London and South
America e o Crédit Franco-Portugais) aderiram porque não
tinham alternativa. Não podiam arriscar-se a ficar de fora. O mesmo
aconteceu com o Montepio. Nos outros países não há nada de
parecido com o o Multibanco justamente porque a nesses outros países
(em todos…) os bancos comerciais privados fazem entre si
concorrência. O que temos são esboços (que agora começam a
desenvolver-se mais …) de alguns bancos que fazem entre si «acordos
de cooperação». Mas nada que se compare com o Multibanco.
Pois
a esse respeito talvez mereça a pena uma outra reflexão que tem a
ver com o uso da tecnologia que vais sendo desenvolvida para
benefício da colectividade (ou não...).
Confesso
que conheço mal os meandros da Justiça portuguesa. Já tive ocasião
de entrar em vários tribunais, já fui testemunha e observador
interessado em «meia-duzia» de processos e tive ocasião de
observar, com alguma atenção, os procedimentos, mais ou menos
arcaicos, que vão sendo adoptados. São do conhecimento geral
expressões como «a Justiça não funciona», «estão sempre a
prescrever processos importantes», «a Justiça é só para os que
podem pagar»... etc., etc. Entretanto, embora tenha um longo
percurso profissional numa área profundamente tecnológica, não
penso ser um tecnocrata, no sentido de que acho que «isto» não
vai lá só (nem sobretudo) com soluções técnicas.
Vem
isto a propósito de em tempos ter tido ocasião de ouvir o dr.
Marinho Pinto dizer na televisão que os procuradores do Ministério
Público não têm acesso directo a bases de dados de entidades (se
bem me lembro, posso estar enganado nos detalhes) como as
Conservatórias Prediais ou das Repartições de Finanças. E aí
cabe perguntar como é ainda possível, num país que se gaba, com
toda a razão, de ter o sistema de transacções interbancárias (e
não só...) mais avançado do mundo. Se temos em Portugal
inteligência e conhecimento
tecnológico para desenvolver, e manter a funcionar, um sistema como
o sistema multibanco, como é que não somos capazes de montar e
manter a funcionar um sistema informático que permita a qualquer
agente do Ministério Público (ou a qualquer agente das autoridades
públicas, devidamente autorizados) a
aceder instantaneamente a toda e qualquer informação necessária e
relevante para a investigação criminal, designadamente os crimes de
colarinho branco.
E
depois lembrei-me (esquecido que eu sou...) de que o sistema
multibanco só foi possível por causa do «gonçalvismo»... Logo,
uma solução eminentemente política.
De facto, os outros países
também têm engenheiros informáticos e programadores de
computadores de altíssima qualidade. Todos os bancos desses
outros países têm também ATM's (caixas automáticos) em todas as
esquinas... O que não têm é um sistema multibanco... Repito: se
somos capazes de ter um sistema com a sofisticação e capacidades do
sistema multibanco porque raio de razão é que não somos capazes de
ter um sistema informatizado que ligue todos os tribunais, de todo o
país, com acesso (devidamente regularizado) por parte de todos os
agentes da Justiça?!...
A
quem é que isso não interessa?...
Pelos
vistos vai ser preciso um novo período de «gonçalvismo»...
1 Revista Unibanco (Março e Junho de 1994)
2 Economista húngaro (nascido em 1928) que se tornou conhecido pela crítica do sistema de planificação central mas que não deixava de sublinhar também o eventual papel da informática como precioso auxiliar para a simulação e controle da economia de mercado por parte das instituições políticas...