Em jeito de Prólogo
(para um eventual livrinho sobre o tema...)
Maurits Escher é talvez o artista que melhor nos oferece muitas representações gráficas do modo de pensar dialéticamente. Aquilo de que se trata aqui é também uma tentativa de perspectivar um determinado fenómeno, em permanente evolução e com múltiplas facetas, caracterísitico da sociedade humana em determinada fase da sua evolução histórica, e olhando esse fenómeno a partir de um determinado «ponto de observação»: o de alguém que procura entender o mundo e os porquês da emergência de determinadas caraterísticas e funções nos mecanismos e forças em presença. Nessa tentativa de perspectivar o sistema mundial de refúgios fiscais, adopta-se assim o ponto de vista de quem sofre os efeitos desse sistema mundial de refúgios fiscais, mas que procura adotar a posição teórica do analista distanciado. Assim sendo, ao olharmos para esse sistema mundial de refúgios fiscais estamos também a tentar vê-lo como uma faceta particular de um fenómeno mais abrangente, o qual seja, o comportamento recente do sistema capitalista.
Justifica-se este esclarecimento preliminar na medida em que se podem encontrar múltiplas explicações e narrativas sobre o fenómeno, velho já de alguns séculos, mas que sobfreu recentemente (de há umas três décadas a esta parte) um crescimento verdadeiramente exponencial.
Algumas dessas narrativas e explicações justificam e defendem e existência de refúgios fiscais, mesmo levando em linha de conta alguns efeitos preversos. Outras narrativas e explicações concentram a sua atenção em determinadas caraterísticas recentes deste fenómeno de «fuga aos impostos», sem com isso entrarem nas causas mais profundas da (relativamente) súbita «explosão» do fenómeno «refúgios fiscais».
É nesse contexto que é importantíssimo olhar estas coisas de um ponto de vista em que se adopte o modo de pensar dialéticamente: quer em termos de transição continuada entre determinadas condições de existência sem que determinado fenómeno perca a sua identidade específica (o adolescente já não é a criança mas ainda não é o adulto...), quer em termos da diversidade de pontos de vista possíveis sobre um mesmo fenómeno. Quero com isto dizer que das múltiplas e diversificadas narrativas e explicações que se podem encontrar na literatura sobre os refúgios fiscais, sempre é possível aproveitar alguma coisa de útil para uma compreensão global e mais abrangente do fenómeno.
Tem-se desenrolado ao longo dos séculos um conflito latente entre dois tipos de agentes ou atores sociais que poderiamos aqui designar por «empresas» e «Estados». Outros poderão falar antes no recorrente conflito entre a «força da espada» e a «força do dinheiro». Claro que, para além do permanente e latente conflito, sempre houve entre estes dois tipos de agentes sociais, interpenetrações de pessoas concretas e de modos institucionais de actuar, conluios, alianças e compromissos vários1. Ao longo dos séculos tivemos as repúblicas italianas, constituídas a partir de coligações do poder económico, tivemos a Liga Hanseática ou ainda a primeira empresa privada multinacional, a Companhia Holandesa das Índias Orientais, a qual assumiu paulatinamente poderes soberanos sobre os territórios que decidiu administrar.
Com a emergência e consolidação do moderno Estado, com as características de soberania e respetiva exclusividade de determinados direitos e obrigações, que hoje se lhe atribuem, aquele conflito permanente entre a esfera privada do negócio mercantil e a esfera pública dos interesses da colectividade como um todo, assumiu novos contornos que se vêem a traduzir e resumir na sempre controversa problemática da cobrança e utilização de impostos...
Para conclusão deste prólogo devo chamar a atenção para o uso preferencial de «refúgio fiscal» em vez de «paraíso fiscal». Não é uma questão de pedantismo. Já foi sugerido que a expressão «paraíso fiscal» teria resultado de uma errada tradução da palavra inglesa «haven» (em vez de «heaven»). Enquanto que «haven» quer literalmente dizer «refúgio» (ou porto de abrigo), «heaven» quer de facto fizer «paraíso» (ou «céu»). Pois bem, enquanto que a expressão «paraíso fiscal» pode também transmitir a ideia de «algo de muito bom» e, de certa forma, inofensivo e «aberto a toda a gente» (em particular aos que lá vivem...), a expressão «refúgio fiscal» pode eventualmente alertar a cidadania mais responsável para o caracter ilícito da evasão e evitação fiscal. Aquilo não são paraísos, são refúgios (onde se escondem os dinheiros daqueles que não querem pagar impotsos e que nós, todos os outros, temos que compensar e substituir com o pagamento dos nossos impostos e a taxas cada vez mais elevadas...)
Agradou-me em particular esta última nota sobre o uso da expressão correcta. Não é 'pedantismo' nenhum. Vindo eu das ditas 'humanidades', sei bem a importância que as palavras têm neste mundo simbólico em que vivemos. A palavra 'refúgio' está muito longe do campo semântico da palavra 'paraíso'. E revela muito melhor o roubo a que estamos legal e presentemente condenados.
ResponderEliminarLi a "Suite 605", trabalho de investigação feito por um jornalista. Temos necessidade de uma abordagem a outro nível. Venha lá o "livrinho".
ResponderEliminarJá entreguei o «manuscrito» ao editor. Recebi hoje a resposta de que a «coisa» depende do que já estava orçamentado (ou planeado) para este ano. A ver se «cabe»...
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